Sem uma distribuição coerente de recursos, as leis de incentivo tornam a cultura refém da iniciativa privada.
A coluna desta semana pega o gancho, mesmo que um pouco atrasado, da polêmica criada pela aprovação do Ministério da Cultura do projeto "O mundo precisa de Poesia", proposto pela cantora Maria Bethânia.
Calma! Não estou aqui para julgar o conteúdo do projeto, nem para criticar a atitude do proponente de solicitar aprovação de mais de R$ 1,7 milhão para produzir um blog de poesia com vídeos diários de até dois minutos. Esse assunto já foi amplamente discutido pelos diversos canais da sociedade e todo mundo já sabe o que as pessoas pensam a respeito dele. Discutir isso neste momento seria falar mais do mesmo.
O assunto que volto a colocar em xeque não é a aprovação de projetos como este, mas a captação no setor privado oriunda destes recursos aprovados. Não é segredo nenhum que a cultura no Brasil, no atual sistema proposto, se sustenta com dinheiro público. Não há um único médio ou grande projeto em cartaz que não conte com o patrocínio de empresas privadas e com a chancela dos Governos Federal ou Estaduais e Municipais. As leis de incentivo surgiram como uma forma de o Estado fomentar a produção cultural, fazendo com que as empresas desembolsem antecipadamente o valor que pagariam de imposto ao Governo, repassando diretamente às produções.
A questão toda é que uma lei que teria tudo para democratizar o bem cultural acabou se tornando uma ferramenta que traz retorno para poucos. Há muito tempo, as empresas entenderam que as leis de incentivo seriam uma forma eficaz de garantir boa divulgação, mídia e marketing para sua marca, sem custo algum ou investimento de sua parte. Afinal, quem paga a conta, no final, é o próprio governo, através da conversão do imposto a ser recolhido. É claro que isto gera alguns custos internos na empresa, visto que se torna necessária a criação de uma estrutura que possa avaliar, aprovar e acompanhar os tais projetos incentivados.
A questão toda é que a captação de recursos se tornou um mercado lucrativo no Brasil, e o foco destes recursos se concentrou em projetos que tenham forte apelo midiático e nomes de peso no seu elenco. São poucos os projetos de gente desconhecida que conseguem captar e, muitas vezes, porque tem algum contato forte no mercado ou parente que esteja propenso a dar uma força ao artista. E, aí, o que se percebe é que o problema não está na Bethânia, mas no sistema em si. O próprio governo criou uma forma das empresas fazerem marketing cultural sem gastar um tostão.
E eu volto a dizer: em vez de se democratizar o acesso, a política cultural atual acaba por contribuir para uma concentração de recursos na mão de poucos produtores. Ter projeto aprovado em lei de incentivo não é garantia de nada.
A lei lhe dá apenas a oportunidade de poder sair por aí tentando passar o pires para que seu projeto aconteça. Aí, o que vale nesta hora é a rede de contatos que você possui.
Caso contrário, espere pela cartinha padrão de agradecimento que toda empresa tem pré-programada para enviar para um projeto que não tem a menor intenção de ler.
Salvo algumas exceções de leis que incentivam até 80% de conversão do imposto, fazendo que a empresa patrocinadora tenha que contribuir com 20% do valor proposto, o resto é dinheiro que sai de imposto e, consequentemente, quem paga a conta da cultura é o contribuinte.
A Lei Rouanet tem buscado alternativas para diminuir este hiato que não democratiza o bem cultural através do Fundo Nacional de Cultura, o qual tenho sérias dúvidas se irá funcionar. Na minha modesta opinião como produtor, se é o governo quem paga a conta no final, ele também não deveria definir quais projetos a empresa "incentivadora" deveria patrocinar? Num exemplo simples, se a empresa X deseja patrocinar um musical ou espetáculo com elenco formado por gente famosa, então ela deveria também desembolsar o mesmo valor incentivado para projetos menores, de gente desconhecida, e que não tenham forte apelo midiático. Isto sim seria uma distribuição de recursos que democratiza o bem cultural, fomenta a criação e trabalha em benefício da arte. Se isto não é possível fazer, qual a alternativa então? O pequeno produtor continuará entre a cruz a caldeirinha?
Coluna publicada em 04/2011 - Guia da Semana - Artes e Teatro