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Um Café, Dois Estrangeiros e Um Autor

"O Estrangeiro" de Camus, monólogo sobre a indiferença perante a existência, com Guilherme Leme e direção de Vera Holtz, estréia em 6 de fevereiro no SESC Copacabana

Meu primeiro contato com a obra de Camus aconteceu um pouco tarde. Tinha meus vinte e cinco anos e estava vivendo um período de reconhecimento e de questionamentos sobre os caminhos que trilhava. Havia uma sede de arte dentro de mim brigando com o exterior de uma vida de terno e gravata. Sempre tive um gosto apurado e requintado para leitura e apesar de achar que escolhia bons livros, creio que tenha sido escolhido por eles. Acredito que alguns livros tenham o poder e o desejo de escolher seus próprios leitores. E foi assim que descobri Camus e sua obra “O Estrangeiro”. Confesso que, a princípio, a obra me causou certo desconforto e estranhamento. Aquela indiferença de Meursault perante a existência me causava repúdio por fazer tanto sentido e ao mesmo tempo ser incompreensível no meu cotidiano.

Meu segundo encontro com Camus aconteceu dois anos depois, numa leitura do texto Calígula, uma peça primorosa e a partir da qual tive a oportunidade de dar vida ao poeta Scipião. A partir daí, Camus me conquistou definitivamente. Talvez pelo fato de considerar aquela solidão e indiferença tão real, tão palpável, tão presente dentro de mim. Começava a descobrir o porquê de ter sido escolhido pelo livro e pelo autor.

Mas como em todo processo de aprendizado e conhecimento, creio que tenha criado algumas opiniões equivocadas a respeito do autor e da obra. Eu o considerava existencialista, ou seja, compactuava com o conceito de que a existência precede a essência.

Minhas opiniões sobre Camus e o que acreditava como sendo verdade absoluta, foram postas em xeque no meu terceiro encontro com o autor acontecido em um café em Copacabana, num final de tarde quente de uma terça-feira.

Camus veio me reencontrar através do ator e diretor Guilherme Leme que, no momento, está ensaiando o espetáculo “O Estrangeiro”, com direção de Vera Holtz e estréia prevista para o dia 06/02. Após muito papo regado a café, acompanhei o ator ao ensaio.

É fato que Guilherme Leme é o tipo de artista que nos impressiona desde o primeiro momento em que adentra o recinto. Chique, elegante, articulado, inteligente; conhecedor da condição humana e, principalmente, um dos grandes artistas de sua geração. Guilherme é o tipo de artista que trilha um caminho muito singular, pessoal, na construção de sua carreira. Transita pelo desconhecido e se permite experimentar a arte nas mais diversas formas, seja como ator, diretor ou artista plástico.

A presença de Guilherme, ao mesmo tempo que nos deixa à vontade num bate-papo informal, nos intimida pela força e pelo conhecimento que tem daquilo que faz. Confesso que me senti um garoto perante o mestre. Não estava ali para medir forças, nem mostrar o que sabia sobre a obra. O objetivo era ouvir e absorver o máximo que eu pudesse do seu conhecimento. Afinal, o ator se propunha a falar sobre o processo do espetáculo.

O despojamento e a informalidade da situação permitiram que o papo fluísse facilmente.

Não demorou até que Camus adentrasse nossa conversa.

Para Guilherme Leme, o espetáculo e o texto o encontraram de uma forma curiosa. Há cerca de dois anos, Guilherme fizera uma viagem com Vera Holtz para a casa do amigo Morten na Dinamarca onda passaram as festas de final de ano. Na sala havia um quadro que chamou sua atenção. Tratava-se do cartaz do espetáculo-monólogo “O Estrangeiro”, adaptado e dirigido pelo dinamarquês. Conversaram muito a respeito, e o amigo sugeriu que Guilherme o fizesse no Brasil. Com a adaptação do amigo em mãos, Guilherme se entregou ao processo de aprendizado e imersão na obra de Camus. Durante dois anos se dedicou ao estudo e ao planejamento do monólogo. No ano passado, Guilherme resolveu dar vida ao projeto. Chamou Vera para dirigir e apresentou o projeto para o SESC Copacabana que, de imediato, comprou a idéia.

A partir daí, os ensaios começaram e o ator se prepara para dar vida a Mersault, personagem da obra. Guilherme tem uma opinião muito singular sobre a obra. Fala sobre Camus com conhecimento de causa. Também não o vê como existencialista, considera-o um niilista. A obra que discute o conceito do homem absurdo, aquele que não crê no sentido profundo das coisas, aquele que, sem o negar, nada faz pelo eterno, toma forma na aridez da interpretação imposta pelo ator. Assistir ao processo de criação do ator é muito mais consistente e interessante do que o resultado em si. É possível ver a forma e os caminhos que o ator vai tateando em meio à escuridão, a experimentação do gesto, o eterno exercício de se permitir e, principalmente, o momento em que o criador se torna criatura.

O processo de “O Estrangeiro” é seco, árido e nos vai causando desconforto à medida que Guilherme evolui na sua apatia frente à crença do absurdo da personagem. Não é raro o espectador sentir a mesma apatia e a sensação de que nada precisa ser feito, que o tempo caminha conosco. Trata-se de um monólogo em construção, onde o que foi visto naquele momento possa ser apenas um grão de areia em meio à tempestade do deserto, mas nem por isso menos importante. Por mais que a tempestade da construção mude as areias de lugar, a aridez da proposta está presente no gesto e na fala.

O terceiro encontro com Camus, pelo olhar do ator e de sua proposta, me fez entender um pouco mais sobre o universo do autor. Aprendi mais com o processo de Guilherme do que com o que havia vivenciado com Calígula, talvez, porque enxerguei com os olhos do outro ou por estar mais amadurecido. Esta relação de troca estabelecida, naquele momento, me fez, ao mesmo tempo, me sentir mais próximo de uma arte superior e infinitamente pequeno. A interpretação do ator impressiona pela qualidade, pelo gesto e pelo olhar firme que parece nos desnudar.

E mais uma vez percebo que o texto é que escolhe o ator certo para ele. A arte é feita desta poesia das escolhas. Não sabemos quando um texto irá nos encontrar, mas cedo ou tarde ele virá.

Para Guilherme e para mim vieram em momentos distintos. Camus me encontra numa nova etapa e, mesmo assim, ainda me causa a sensação de que sou um estrangeiro perante a vida.

Meu telefone toca e saio correndo do ensaio em direção ao próximo compromisso. A sensação de desconforto ainda me acompanha. Mas a arte é feita de poesia, de questionamentos. Se não o fosse, que graça teria, não é?

Coluna publicada em 01/2009 - Guia da Semana - Artes e Teatro

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