É fato que grande parte dos atores, diretores e qualquer pessoa que tenha o mínimo de interesse pelo universo teatral já tenha tido contato com a obra de Nelson Rodrigues e, por conseqüência, se apaixonado por ela. O fato é que a obra de Nelson tem traços deliciosos de uma realidade suburbana que mistura e transita universos distintos que se iniciam nas residências das classes abastadas, passeiam pela classe média e encontram sua razão de ser no subúrbio e na malandragem carioca.
Do meu ponto de vista, esse respeito e atração que Nelson exerce sobre todos nós, em boa parte, é causado por uma dramaturgia rica em referências cotidianas muito próximas de nossa realidade. Suas obras são recheadas de desejos escondidos, vidas frustradas, ausência de escrúpulos e muita tragédia. A obra de Nelson nos traz uma certeza: a tragédia a que seus personagens são submetidos é o único caminho para a libertação. A redenção só pode ser alcançada se nos aventurarmos pelos caminhos da traição e do desejo. É essa atualidade de situações que tornam seus textos tão contemporâneos.
CACHORRO! de Jô Bilac se propõe a homenagear este universo. “Livremente” inspirado na obra do “Anjo Pornográfico”, o processo de criação do texto partiu de uma adaptação do terceiro quadro do longa-metragem “Traição”, escrito por Patrícia Mello e que leva o nome de Cachorro!.
O espetáculo narra a trajetória de um triângulo amoroso composto por Solange (Carolina Pismel), o marido Apoprígio (Paulo Verlings) e o amante Almeidinha (Felipe Abib), O amor proibido entre Almeidinha e Solange é o fio condutor da história rodriguiana escrita por Jô Bilac e dirigida por Vinícius Arneiro, o qual lhe rendeu a indicação ao Prêmio Shell de Melhor direção – 2007.
O texto de Jô Bilac garante bons momentos do espetáculo com frases certeiras como “O nosso amor não toma sol...” dita por Almeidinha a Solange que, de forma concisa, resume com beleza poética, o amor vivido na clandestinidade. A qualidade dos textos de Jô Bilac vem evoluindo gradativamente; autor de profusão criativa, está se consolidando como uma das grandes promessas da dramaturgia carioca.
O trio de atores, apesar de ainda jovens, tem talento e o emprestam com visceralidade aos seus personagens, com destaque para Felipe Abib, em ótima atuação, encarnando o amante que age como se fosse o marido traído. A discussão desta inversão de valores é um dos pontos fortes do espetáculo. Aquele que trai é o que se sente traído.
O cenário, assinado por Daniele Geammal, se concentra no uso de luminárias e praticáveis transparentes que em sintonia com a luz de Paulo César Medeiros nos remetem à sensação de clandestinidade, da mutablidade dos sentimentos vivenciados à margem da sociedade. O que está na sombra pode vir à luz. Por fim, o subúrbio carioca está bem representado nos figurinos idealizados por Júlia Marini e na direção precisa de Vinícius Arneiro.
Mais do que apenas uma homenagem ao universo rodrigueano, o espetáculo se propõe a desvendar um cotidiano de falsas aparências, onde é fácil se corromper pelo próprio desejo. Nada de tão novo mas, ainda assim, um grande espetáculo.
Coluna publicada em 07/2008 - Guia da Semana - Artes e Teatro